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OUTUBRO /2008 por Milena Oliveira Cruz

 

Victor Hugo Borges
Animador
 

O que o Brasil tem de próprio

Autor da premiadíssima animação “Historietas Assombradas para Crianças Malcriadas”, Victor-Hugo Borges firmou-se no cenário brasileiro como um dos grandes nomes de nossa animação autoral. Nesta entrevista, ele destaca pontos positivos da evolução do setor, e o que ainda vê como negativo: “Considero São Paulo a capital mundial do criador enrustido.”

 

DL: O que você está fazendo hoje em termos profissionais?

VH: Hoje estou muito mais focado em cinema do que em qualquer outra arte. Minha formação é de artes plásticas, mas assim que eu saí da faculdade comecei a trabalhar com animação, por uma questão de vontade pessoal. As coisas foram dando certo profissionalmente a ponto de eu entrar para a área de animação e conseguir viver disso. É muito difícil ter um foco que abrange tanta coisa: eu gosto de fazer música, desenhar, etc, mas para não correr o risco de tentar fazer de tudo e não fazer nada realmente bem, preferi focar em animação e desenvolver um trabalho mais sólido dentro disso. E tem dado certo. Vim para São Paulo há quase cinco anos e consigo viver de animação autoral. Eu não trabalho necessariamente com publicidade. Esporadicamente faço vinhetas, mas o pessoal já me chama sabendo que tipo de coisa eu posso agregar. Por isso, não é um job, um briefing que eu tenho de seguir didaticamente.

 

DL: Isso é bom, pois fazer animação autoral no Brasil e conseguir viver de animação é uma exceção...

VH: É. Eu sou mesmo uma exceção, infelizmente. Viajo muito para festivais e vejo que existe uma vontade muito grande de se trabalhar com animação, mas ainda não existe as ferramentas para que o profissional consiga chegar ao ponto de viver de animação autoral. Alguns animadores autorais que vivem aqui no Brasil têm de fazer trabalhos paralelos: ou dão aula ou fazem animação sem dinheiro nenhum – o que eu não acho justo, porque animação leva muito tempo para ser feita. Ou ainda fazem publicidade, que apesar de ser legal por você ter a oportunidade de explorar diversas linguagens e se esforçar para ver as coisas pelos olhos de outra pessoa – o que eu acho bacana –, exige muito do profissional, toma muito tempo. Com isso, ele acaba tendo pouco ímpeto para partir para um lado autoral e acaba deixando esse lado morrer para circular no meio publicitário, que de fato é o que dá mais dinheiro.

 

DL: No seu caso, você acha que não deixou morrer porque desde cedo as coisas deram certo?

VH: Eu acho que ajudou. O meu trabalho de conclusão na faculdade foi uma animação. Com todo aquele caráter idealista de primeiro trabalho, quando se quer fazer tudo e deixar algo muito mais complexo do que realmente você pode realizar. Mas por sorte eu lancei esse trabalho para festivais, o que fez com que ele não ficasse apenas restrito ao âmbito pessoal. Sabia que precisava levá-lo pra frente. Principalmente porque uma pintura, por exemplo, você faz e divulga em um site. Uma animação você precisa compactar e depender de alguém se interessar em ver algo experimental, com vários minutos de duração. Na época o meu grupo viajou para várias festivais e ganhamos prêmios com um filme que a gente não tinha pretensão alguma. Isso serviu de incentivo. 

 

DL: Qual foi o primeiro?

VH: Chama Klaustro, um filme de 1999, em stop motion, que é bem experimental, na verdade. Aquela coisa de querer fazer tudo para se testar tecnicamente. Época de fim de faculdade, quando você quer se provar enquanto profissional, artisticamente e tecnicamente. Depois disso eu fiz mais dois filmes com apoio de uma prefeitura local, mas que não dava dinheiro. Eles ajudavam a distribuir o filme – o que já era uma grande coisa para quem não tinha nenhum tipo de auxílio. Foi depois disso que eu fiz um filme chamado “Historietas Assombradas para Crianças Malcriadas”, que deu muito certo; a ponto da gente não imaginar nem um pouco como seria isso. Ele ganhou mais de 40 prêmios e é considerado um dos grandes filmes da animação nacional dos últimos anos. Isso alavancou muita coisa. Depois do filme, quando eu me inscrevo em um edital para pedir patrocínio, já tem um nome. Isso conta muito, porque além de você ter um trabalho bacana e se esforçar, ajuda as pessoas a reconhecerem pelo nome e a acreditar que você pode entregar um filme nas condições em que propõe no roteiro.

 

DL: De seus filmes, o “Historietas” foi o que ganhou mais prêmios, certo?

VH: Sim. Depois dele eu lancei mais um filme, que também teve uma repercussão bacana, mas que não foi nem uma sombra pálida do que foi "Historietas".

 

DL: Geralmente as pessoas conseguem enxergar os seus trabalhos da forma como você os vê? Digo isso porque às vezes você ganha diversos prêmios com um trabalho e nem o considera o melhor deles...

VH: Minha história com "Historietas" é a seguinte: era um edital que propunha um tema que restringia muito, pois precisava ser sobre folclore brasileiro e voltado para o público infanto-juvenil. A princípio eu não queria trabalhar nesses termos. Minha produtora me convenceu que, além de um desafio, seria uma forma de mostrar o meu trabalho para um público diferente. Comecei então a pesquisar e achei histórias muito bacanas do nosso folclore, que eu não conhecia. Olhando hoje, acho que houve um equilíbrio, pois eu tenho uma tendência a “pesar a mão” um pouco mais do que a média das pessoas gostam. Ao mesmo tempo, acho que consigo me comunicar visualmente. Com isso, o filme chegou a um bom equilíbrio entre público e crítica. E quando você tem parâmetros e limites, precisa se esforçar muito criativamente. Você não fica tão solto, tão livre, tão selvagem.

Depois, na seqüência, fiz o Ícarus, que é um trabalho bastante pessoal e que teve uma boa resposta. Os prêmios que ele obteve foram mais restritos à parte de direção de arte, porque eu imagino que era inegável, dentro do contexto de festivais, que o filme tinha um visual bastante forte. Mas nem todo mundo entrou na história, porque ela era mais pessoal. Ou seja, aquelas sutilezas que a arte implica. Quanto mais artístico, mais pessoal e mais difícil de um grupo maior de pessoas entrar.

 

DL: Uma de suas características é a mistura de funções: você desenha, anima, dirige, escreve o roteiro. A Aida Queiroz, uma das organizadoras do Anima Mundi, falou em uma entrevista da formação autodidata dos animadores brasileiros e da necessidade de se ter uma escola de animação no País. O que você pensa sobre isso?

VH: Na verdade existem cursos e escolas de animação no Brasil. Porém, não existe um tipo de escola como existe em alguns países da Europa e dos E.U.A, que têm um foco. Ou seja, uma escola que forme mais pensadores do que técnicos. A maioria das escolas do Brasil estão voltadas para o pensamento técnico – ou seja, você vai aprender a animar. Existem escolas de animação no mundo com uma vertente própria, o que não têm no Brasil. Isso é importante, porque o estudante não tem parâmetros para desenvolver uma idéia própria sem uma formação criativa sólida.

Ele é quase sempre formado para ser um técnico e entrar no mercado de publicidade – mais do que para ter um pensamento autoral. Além de vários outros fatores que impedem o profissional autoral de se dar bem, de investir de fato na carreira. Há profissionais que fazem um filme e logo na sequência acabam tendo de ir para o mercado de trabalho; ou então fazem trabalhos que não têm nada a ver com animação. Isso também vem da formação cultural brasileira, na qual o profissional não consegue viver em um patamar de liberdade. O brasileiro, de certa forma, está sempre restrito às coisas mais urgentes, mais práticas. Digamos que o brasileiro não sonha tanto. Viajando para festivais, vejo que muitos profissionais em início de carreira têm algo forte, como conseguir se comunicar bem e transmitir algo novo, mas que somem depois de alguns anos.

 

DL: Acredito que isso aconteça justamente pelas dificuldades que esses profissionais enfrentam no mercado.

VH: Na verdade é muito difícil equilibrar esse lado idealista com o lado "pé no chão". Nenhum deles é o lado certo. Existem profissionais que são idealistas demais; por outro lado, alguns são muito racionais. O ideal é ter um lado autoral, mas ao mesmo tempo formatar o seu produto, de forma que você consiga atingir o público. Não adianta você gritar algo muito forte e verdadeiro e acabar ofendendo mais do que agradando. É melhor falar objetivamente, mas não dizer tudo. Existem profissionais muito bons que ainda não acharam uma forma de falar com o grande público. Se você faz um longa-metragem, por exemplo, o filme não é seu. Porque um longa não se faz na garagem de casa. Você precisa pagar muitas pessoas, precisa se pagar – afinal de contas, vai trabalhar por uns dois ou três anos no projeto. Portanto, é preciso pensar que o filme é do público e dos investidores. Você está apenas no meio do processo.

 

DL: A indefinição de regras para a exibição de animações brasileiras na TV paga e aberta ainda é um dos maiores entraves do setor?

VH: Tem um problema com relação a isso. Muita gente faz trabalhos bacanas, mas não têm veículos para a divulgação. A princípio, um animador autoral tem os festivais como único veículo. Acaba sendo interessante, porque nos festivais vai muita gente diferente e que se surpreende com os trabalhos. Uma das coisas que eu mais ouço é: "Puxa, o Brasil tem animações bacanas." E mais que isso, animações diferentes. Existe realmente uma coisa brasileira acontecendo em animação. Mesmo o meu trabalho, que tem um caráter mais universal, apresenta coisas brasileiras que geralmente quem é de fora enxerga mais do que aquele que está aqui dentro.

A questão da falta de acesso da animação brasileira na TV é muito profunda e envolve muita coisa, como a nossa formação cultural. Além, é claro, do fato de ser muito difícil competir com produtos de fora. Como é que uma TV vai investir em uma série de animação brasileira – que ela praticamente vai ter de pagar a série, e cada episódio vai custar mais de R$ 50 mil em média – se ela pode comprar o Pokémon por R$ 5 mil o episódio, sabendo que aquilo é um fenômeno mundial e sabendo que eles estão vendendo barato porque sabem que vão ganhar com marketing, com venda de produtos? Ou seja, o mercado cria empecilhos muito complexos.

Eu não tenho uma boa resposta para como mudar isso. Estamos estudando o mercado – não só eu como outras pessoas – pensando em como entrar na TV nacional. Eu não imagino que deva ser com produtos ultra-baratos, como acontece na MTV, que chega a um determinado público com produtos muito mal pagos para conseguir ter um sustento e uma não-competição. Não acho interessante, porque não gera o que é mais importante para o Brasil em termos de arte: uma indústria. Ou seja, pessoas trabalhando e vivendo daquilo. Quando você chega em um ponto em que tem uma visão autoral bacana e que está agregando poder porque ganhou prêmios e financiamento, é hora de pensar nisso: "Como distribuir isso verticalmente? Como transformar o seu trabalho em um projeto que agregue outras pessoas?" 

 

DL: Princesas do Mar, do Fábio Yabu, é um exemplo recente que deu certo.

VH: Eu não conheço muito o trabalho dele, mas acho que o Fábio é uma pessoa que consegue capitalizar e ter uma noção de nicho. É um cara que tem um senso de equilíbrio entre o autor e o marketing – ou seja, o que é vendável. No entanto, não acredito que seja algo que vá para o grande público. Se você perguntar para a maioria das pessoas, elas ainda não sabem do que se trata. De certa forma, ainda é um produto de nicho.

 

DL: Pelo que você está dizendo, ao menos em um curto prazo a vida da animação brasileira continuará sendo nos festivais...

VH: Sim. São os festivais que acabam dando mais respostas e visibilidade concreta aos trabalhos, em termos autorais. No caso de "Historietas”, eu tive sorte. O edital propunha que você não precisava entregar uma cópia de 35mm para o festival (acabamos fazendo isso por conta própria). Você entregava uma cópia em Beta para entrar na programação da TV Cultura e TVE. Portanto, teve a proposta de exibir em rede nacional, o que é muito bacana. Era um edital que previa a larga distribuição do trabalho e no dia em que "Historietas" era exibido na TV eu só ficava sabendo porque recebia um monte de e-mails de mães, crianças e professoras dizendo que gostaram do filme e perguntando como conseguiam cópias. Ou seja, existe uma vontade do grande público de ver esse trabalhos, e não só de pensadores e críticos.

Existe a vontade do público perceber uma coisa brasileira acontecer na TV, com uma estética própria e não aqueles clichês de favela, morro, nordeste, etc. Existem outras coisas. O Brasil é muito complexo. O problema é que, geralmente, quando o autor brasileiro decide trabalhar com contos e causos do folclore brasileiro, geralmente vai cometer alguns erros: Vai idealizar e polir demais, a ponto de perder as características principais. Ou seja, ele vai manter o óbvio, mas vai tirar, para ficar mais fácil, uma série de coisas importantes. E esse universo do folclore brasileiro não é tão leve. Se você pegar as histórias originais de Saci, por exemplo, vai perceber que elas são bem assustadoras e incomuns, surreais – tanto quanto o terror oriental, que é tão bem consumido hoje porque soa novo. Eles trabalham com diferentes questões do medo, assim como nós. Mesmo Monteiro Lobato criou um rico universo a partir disso, bastante complexo e cheio de nuances.

No entanto, ele não fala de morte, subconsciente e de questões da vida muito concretas. O terror clássico americano e europeu, por sua vez, fala do medo do externo – do vizinho, do estrangeiro, do psicopata, dos outsiders. Eles têm medo do que vem de fora. Já o terror japonês explora o medo como um complexo de culpa. Por exemplo, um fantasma, em um universo de terror oriental, é quase uma materialização de alguma coisa ruim que aconteceu ali em termos de “culpa”, no passado.

O Brasil também tem uma novidade nesse aspecto. Existe uma coisa própria do medo brasileiro e o mundo quer saber disso; assim como todo mundo se interessa pelo terror americano e oriental. Portanto, quando o autor brasileiro tenta polir demais, acaba por tirar os aspectos mais essenciais da obra, achando que vai agradar mais. É como se o brasileiro se escondesse; existe aí um problema de auto-estima. No caso do "Historietas" penso que houve um bom equilíbrio entre coisas concretas das versões folclóricas e também de algo para adocicar esse universo, porque era para crianças.

No "Historietas" há a estória do Jurupari, que originalmente é a estória de um caboclo gigante ou de um anão que traz pesadelos sentando no abdômen das pessoas e as enforcando. Mas você não tem como fazer isso com uma estória infantil. Porém, você pode transmitir a essência do Jurupari de outras formas e se apropriar de elementos universais para passar a questão do sono e do pesadelo, como as estrelas, o pó nos olhos, etc. Existem arquétipos que você consegue manter e ao mesmo tempo amenizar de uma forma que não tire os elementos principais. Você não pode fazer o Jurupari da mesma forma que ele se apresenta originalmente, mas também não pode transformá-lo em um duende feliz ou um menino sapeca.

 

DL: E pelo que você mesmo já falou, esse equilíbrio está muito baseado nas experiências que você mesmo teve com o medo quando criança, não?

VH: Sim. É muito importante, quando você trabalha com criança, que não esqueça quem foi quando era menino. E se você tentar, vai se lembrar, inclusive, que entendia o que estava acontecendo. As pessoas falavam escondido sobre sexo, drogas e violência, e você entendia. Na verdade não sei se eu era uma criança esperta, ou se eu era como toda criança, mas por via das dúvidas eu imagino que as pessoas são assim também, pois não convivo com muitas crianças. Não vou fingir que eu era uma criança totalmente inocente. Claro, eu não enxergava um monte de coisas que eu enxergo hoje, mas muita gente esquece que as crianças são tão humanas quanto nós, adultos. Eu lembro, por exemplo, que tinha medo e ao mesmo tempo fascinação por terror. Assistia aos filmes e depois me arrependia. Muitas vezes eu ficava ouvindo o som e olhando para o projetor, que dá para ter uma visão de tudo o que está acontecendo na tela. Porque olhar para a tela era muito forte para mim. Até hoje eu assisto muito poucos filmes. Tenho uma relação muito forte com o cinema, mesmo que o filme não seja assustador ou forte. Por isso, escolho a dedo o que vou assistir. É mais ou menos como se eu visse a essência da obra, a ponto de eu ficar dias pensando nela, o que acaba por me comprometer em termos produtivos.

 

DL: Vários teóricos falam das oportunidades que o Brasil já perdeu em sua história, em aspectos políticos, econômicos e sociais. Trazendo essa discussão para o tema da animação, e sem falar em utopias como a do que "deve ser", o que de fato pode ser feito pela animação brasileira hoje e que não está sendo feito?

VH: Algumas coisas estão acontecendo. Primeiro eu acho que estamos abandonando alguns ideais inatingíveis. Por exemplo, existia um pensamento de que deveriam ter cotas para a animação brasileira nas TVs. Isso é impossível de ser feito – já é fato. Portanto, começa a se perder uma inocência ao paternalismo dos mecanismos de acesso e disseminação de animação brasileira. Os editais de animação, que são muito importantes – estão mais fortes e mais "pé no chão".

Em termos do que pode melhorar, acho que deve existir um pensamento para incentivar o autor a "botar a cara", o que muitas vezes não acontece. Eu considero São Paulo a capital mundial do criador enrustido. Conheço muita gente boa que não sai do apartamento, que não sai do mundinho. Como assim? Não há como dar ferramentas para uma pessoa que não quer sair do lugar. É um processo interno. Se você tem uma idéia, ela vai se propagar – se você quiser. Existe, portanto, um excesso de humildade de muitos criadores brasileiros. Existe muita gente boa que não consegue capitalizar ou colocar pra fora a visão que tem das coisas. Principalmente se você está em São Paulo. Por mais que seja Brasil, com os seus contrastes, São Paulo é uma das cidades com mais mecanismos de consumo e divulgação cultural do mundo. É uma das maiores cidades e isso não é pouca coisa. São Paulo e Rio de Janeiro são os pólos de disseminação e pesquisa cultural. É nesses lugares que as coisas estão acontecendo.

 

DL: Em uma entrevista anterior, você disse: “Na verdade sou meio traumatizado com o termo “artista”. Moro numa província que pensa que é metrópole e aqui tem bastante desse bicho citado entre aspas. Ninguém vende, ninguém tem dinheiro, ninguém conhece merda nenhuma e todos arrotam caviar.” Isso é uma resposta a quê?

VH: Quando disse isso, ainda morava em Santos. Acontece que existe uma outra postura, que seria oposta a do criador enrustido. É a do cara que na verdade não cria, mas que deu sorte de estar em um meio em que as coisas foram facilitadas para ele.  Isso se vê em muitas cidades do interior. Santos, por exemplo, não é uma cidade pequena. Porém, quando concerne a criadores, a maioria acaba vindo para São Paulo. Os que ficam lá geralmente são aqueles que, de certa forma, se apegam a um life style e que não vão sair dali. São profissionais que vendem muito pouco, que vêm de famílias tradicionais ou que fazem uma série de picaretagens para conseguir dinheiro. Eu mesmo tive professores que roubavam idéias de alunos para conseguir capitalizar depois. Artistas muito ruins, mas que conseguiram convencer o high society local – que já é super "cabecinha" – e viver disso. Ou seja, pessoas que não têm um trabalho, mas que mesmo assim sobrevivem. Nessa época, quando eu estava em Santos, isso era muito evidente para mim. Mas ao invés de ficar lutando contra isso, eu vim para São Paulo. Não ia ficar lá "batendo cabeça".

 

DL: Hoje você tem uma produtora, certo?

VH: Sim. Sou sócio de uma produtora chamada GLAZ Cinema, que é relativamente bem conhecida e tem trabalhos relevantes. Além disso, tenho uma produtora chamada Neoplastique, que é quase um "braço" da GLAZ Cinema. É como se fosse uma saída paralela para alguns trabalhos. A GLAZ faz de tudo: longa-metragens, documentários, etc. Temos uma cartela interessante de uns 20 curtas e uns dois, três longas. Somos em três sócios e temos alguns autores que são agregados momentaneamente.

Agora, aos poucos, estamos tentando migrar do meio autoral para o comercial – trabalhar com séries e longas-metragens, vai ser um desafio e tanto. Eu estou começando um projeto de longa-metragem que foi mais ou menos pensado através do universo de “Historietas”. Porque não tem jeito, “Historietas” já virou um parâmetro e as pessoas querem mais. Ao mesmo tempo, continuo fazendo trabalhos autorais. Vou lançar logo, logo um filme novo, chamado “O Menino que Plantava Invernos”. Além disso, no fim do ano devo terminar um novo curta, além de ter mais um para fazer no início do ano. Todos eles patrocinados. Ou seja, sem idealismo, projetos que têm aval de um grupo de jurados que acham que são projetos que devem “acontecer” por algum motivo.

 

DL: Como você conseguiu esses patrocínios? Chegou a bater na porta?

VH: Não. Quase sempre foi acompanhando o mercado político e institucional brasileiro e tentando entender o melhor possível as ferramentas que ele oferece. Claro, além de conhecer, você precisa desenvolver produtos sólidos e relevantes. Mas parte daí, de pequenos detalhes. Você saber que determinado edital vai xerocar o seu storyboard para passar para uma série de jurados. Portanto, você vai fazer esse storyboard pensando que ele vai ser xerocado. Ou seja, trabalho, consciência produtiva e “engenharia”.

Outro exemplo: você sabe quem são alguns jurados. Então se pergunte: o que essas pessoas pensam? Eu levo isso em consideração nas minhas apresentações. Porque sinceramente, apesar desse pensamento parecer frio, as pessoas não são obrigadas a “te comprar”; e o que você facilitar para elas, melhor. Mas você deixa de ser verdadeiro por causa disso? Não. O que vai acontecer – a sua arte – vem depois desse processo. Portanto, o primeiro passo é falar clara e objetivamente, conhecer as ferramentas e saber como elas funcionam nesse processo.

 

DL: Para terminar... Você foi uma criança malcriada?

VH: Não. Sinceramente não. Fui uma criança muito calma e que conseguia conviver muito bem sozinha. Eu era muito quieto. Era aquela criança que os parentes e os amigos da família queriam levar para casa, porque ficava no meu canto brincando ou assistindo TV. Era muito tranqüilo, mas muito atento – sempre tímido, mas disposto a entender as pessoas.

 

Dicas

Tentar ser o mais verdadeiro possível consigo mesmo. Eu fui em um workshop do roteirista e um dos criadores do Bob Esponja, que na minha opinião é um excelente exemplo porque consegue apresentar uma visão original e ao mesmo tempo ser um projeto de grande aceitação, que gera muito capital. Esse roteirista, que analisava os projetos das pessoas que estavam lá, percebeu uma coisa muito clara dentro do mercado brasileiro: a maioria dos animadores tenta fazer uma coisa que não é realmente deles. Por exemplo, tinha um cara lá de calça cáqui e blusa branca, querendo fazer um filme sobre caveiras. Você olhava para o cara e não entendia...

Então o roteirista, que é a cara do Bob Esponja – com os olhos esbugalhados, o cabelo loiro jogado para o lado, aqueles dentes – falou: “Sim, o Bob Esponja foi inspirado em mim.” Além disso, o criador do personagem é um biólogo marinho, um surfista que mora no Havaí. Ou seja, aquele é o universo do cara. O meu trabalho é o meu universo: o que eu consumo, o que eu vejo, etc. Se você conhecer pessoalmente o Angeli, o Laerte, o Allan Sieber, vai ver sem esforço que eles são, em algum nível, os seus próprios personagens. Se você faz algo realmente seu, se você se conhece a ponto de saber o que gosta, vai criar uma coisa única. Porque cada pessoa é única e tem a sua impressão digital em termos de pensamento. Isso, em qualquer nível: você como jornalista ou um cara como motorista de ônibus. É assim que o trabalho vai dar frutos e você vai ser feliz fazendo o que gosta.

Portanto, é importante não ir contra o que você é e não desejar ser como outra pessoa. “Ah, esse cara é cool. Vou ser igual.” Errou. Seja você! Quanto mais você agir assim, mais cool será e maiores são as chances de passar adiante algo que ninguém mais vai fazer. Esse é o princípio de um criador.

Depois desse princípio estabelecido, você precisa pensar objetivamente em como distribuir isso sem medo de dar “a cara à tapa”, de se mostrar. A partir daí, o resto acontece.